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Textos


O Estranho Solitário

A vida é uma batalha diária contra a morte.

— Provérbio Hitaísta.

 

 

 

Foi durante uma viagem pelas Terras Altas — conhecidas como “O Grande Paredão” —, rumo ao Campeonato Intergaláctico de Esportes de Inverno.

Após assistir ao telejornal, sem deixar escapar nenhuma das mais atualizadas notícias do torneio, Corunir estacionou o carro no que parecia ser o único ponto de abastecimento de uma daquelas estradas desertas da região, perto do hotel onde se hospedavam. Desceu e entrou naquele bar, balançando o gongo, que soou quando a porta foi aberta.

O estabelecimento era à luz de velas. Encravado na encosta nevada de uma montanha, abrigava os primeiros suspiros de vida racional daquela pequena localidade. Modesto, tinha um aspecto sombrio e desgastado, mas continha exatamente o que precisava. Pediu um café expresso e saiu à procura de uma mesa vazia, quando ouviu uma voz.

— Ei, psiu, gostaria de jogar Klidelvol?

Virou-se e avistou um rapaz sentado a uma mesa lá atrás, no fundo do estabelecimento.

— Pois não? — Aproximou-se.

— Aceita jogar Klidelvol?

O rapaz era baixo e franzino. Cabelos desgrenhados. Roupas sujas e desbotadas. Voz fina.

Tinha a impressão de que o conhecia de algum lugar.

Seria no telejornal?

— Aceito — respondeu Corunir, ocupando a cadeira vazia disposta em frente a ele. — Qual o nível?

— Seis.

— Seis?! — berrou Corunir, e se deu conta de que havia atraído a atenção do bar inteiro. — Me desculpem. — O rubor cobriu-lhe a face.

Foi preciso algum tempo para as pessoas no bar voltarem à normalidade.

— O senhor topa jogar?

Corunir hesitou um tempo, mas aceitou. Não era de recusar apostas quando estas eram feitas, embora soubesse que agora todos os seus bens estavam em risco. Seis era o nível máximo da aposta.

O rapaz então arremessou o dado.

Três.

É, nada mal.

— É a vez do senhor agora.

Corunir fez a sua jogada.

Cinco.

— Vai, o senhor começa.

Corunir sorriu, e iniciou a rodada.

Seis.

— Seis?! — O rapaz entrou em estado de perplexidade.

— Sim. — Impulsionado por uma empolgação incomum, Corunir repassou-lhe o dado, e ele fez a segunda jogada.

Três.

— Sua vez de novo. — Parecendo agora um pouco preocupado, o rapaz rebolou o dado na mesa, que quicou até chegar a ele.

Corunir fez a terceira jogada.

Três.

Merda!

Dali em diante, a sorte já não estava mais com ele, ao passo que o rapaz tirou seis nas duas jogadas seguintes, ganhando a partida.

— Vai me pagar agora ou arrisca mais uma partida para recuperar a dívida?

— Arrisco mais uma partida!

E continuaram a jogar. Não só uma partida, mas várias, e Corunir perdeu todas.

Se fosse supersticioso, diria que a chegada do café lhe trouxera um mar de azar, mas, como não era, ficou foi com raiva de si mesmo por ter embarcado naquela jornada sem volta.

— Mas eu não tenho como pagar isso! — protestou.

— Então me ceda alguns de seus bens.

— Eu não vou ceder meus bens! Eles não valem isso tudo! — E atraiu a atenção do bar inteiro de novo ao falar isso.

— Melhor a gente conversar lá fora — aconselhou o rapaz.

Meio constrangido, Corunir concordou.

Pagaram a conta pelo telec e saíram, caminhando lado a lado pela estrada deserta.

— Só tem uma outra maneira de o senhor pagar essa dívida.

— E qual é?

Algo estranho parecia ter acometido o rapaz, quando Corunir o encarou mais de perto.

Seus olhos mudaram de cor; do castanho, foram para um vermelho cegante.

Ele respondeu com uma voz que não parecia sua, mas emanava da sua mente plenamente consciente:

— Sacrifício humano. Alguém terá que morrer.

Pelas Barbas de Aalenir, um adraguista!

Corunir tateou a kadraga embainhada com força, mas o rapaz já preparava o ataque. Não dava tempo de fazer nada.

Misericórdia!

Retomou o caminho pela estrada o mais depressa possível, entrou no carro e trancou a porta, arfante.

Pelas Lágrimas de Aalenur! O que foi aquilo?!

Mirou o painel.

A estrada se estendia deserta à retaguarda, até se perder de vista no horizonte.

Não havia nenhum sinal de perseguição por perto: o adraguista não tinha estado na sua cola; havia desaparecido. Escondia-se em algum lugar, ou então era pouco veloz.

Corunir respirou fundo.

A segunda opção era um tanto improvável, conveniente demais. Descartou a possibilidade imediatamente, embora soubesse que, no fundo, adraguistas fossem naturalmente covardes, incapazes de superar suas frustrações.

“Se eu fracassei, todos devem fracassar!’’, era o pensamento. Por isso, recorriam ao Inimigo.

Corunir lembrou-se dos versos que sua mãe costumava lhe recitar, quando criança:

 

 

MATÉRIA-PRIMA

 

O escultor tem a argila;

o desenhista tem o lápis.

O pintor tem a tinta;

o escritor tem as palavras.

O músico tem o som;

o Divino, cada partitura, cada material,

tangível ou intangível

cada átomo que constitui o multiverso.

 

 

Adrag, o predador de átomos, era o oposto de Hito e Hita, os Dois Que São Um. Mas algo precisava existir previamente para ser devorado, não precisava?

Corunir desembainhou a kadraga e saltou do carro, a coragem revigorando.

— Vamos, vamos! Apareça! Apareça! Apareça! Apareça e seja homem pelo menos uma vez na vida! — vociferou.

Mas a arma em suas mãos continuava apontando para o nada, e assim permaneceu nos próximos minutos.

Ele repetiu:

— Vamos! Apareça! Apareça! Apareça! Apareça, vamos! Seja homem pelo menos uma vez na vida, por favor!

Diante disso, um ranger de porta se abrindo. Seguido por um som de rasgo e um grito agonizante, que logo foram abafados, como se um animal acabasse de ser inteiramente dilacerado por uma enorme fera, ao fim de uma longa noite de caçada.

Adrag estava satisfeito. O sacrifício de Corunir havia terminado.

Alexandre Braga
Enviado por Alexandre Braga em 02/07/2025
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